Thanks to : Gabi Dworecky (editor) and Adrian Flack (reader)



BOOK - Zurich, Outubro de 2009

Você tem só cinco anos e está segurando a mão de sua mãe, enquanto atravessa a rua. Despreocupado, seus olhos buscam eventos na calçada e nos corpos das pessoas que passam por você. Tudo é puro entretenimento. Vários rostos são engraçados, contorcidos em pensamentos e problemas que você não entende, e que os faz ficar com a mesma careta que você faz quando está sentado na privada. Por ser pequeno, você está mais perto do asfalto e nota todas as texturas causadas pelas rodas dos carros. Você é fascinado pela fragilidade das coisas, pelo peso dos prédios, dos carros, pelo alinhamento dos postes e das árvores, a imensidão, essa incrivel imensidão e a organização das coisas. A frágil organização das coisas e o perigo de perdê-la. Mas você não tem como se expressar. Sente, mas simplesmente não tem como se expressar.

Apesar dos seus cinco anos, você já nota ha algum tempo que as coisas deterioram, quebram, apodrecem. Você não gosta disso e, ao esboçar uma pergunta, não recebe nenhuma resposta que te convença. Parece que você não se sente muito bem; pelo menos não tão bem quanto os outros parecem se sentir. Talvez tenha algo a ver com a brancura da tua pele, ou pela língua que se fala em casa, que te faz sentir diferente. pessoas passam conversando, cantando e berrando coisas as quais você aspira, traga como se fosse fumaça de outro mundo mas que te são mais estranhas que a vegetação de Plutão. Você os entende perfeitamente bem, sim, e eles a você, cada palavra, mas não entende o que dizem. Faz sentido? Faz sentido? Todos parecem saber o ritmo da dança, menos você. Todos olham pra você e te dizem algo numa língua que você simplesmente nao entende. Ainda tem os óculos que colocaram em você. Sim, ele parece fraturar ainda mais as imagens que aparecem na tua frente nesse clima tórrido, as vezes gélido, as vezes tão claro que você mal consegue enxergar, tal e a intensidade da luz, ou tão escuro que nem o apalpar das paredes te ajuda, pois a textura reta e angular de tudo, se assemelha ao...

Continuando a caminhada, você vê um filhote de passarinho morto e já seco, esmagado por algum carro. Você sente um frio na barriga, um calafrio daqueles que te sobem pela perna, e te dão uma terrível vontade de dar um berro. O que você sente não é normal. É como se o espírito daquele pássaro estivesse ali esperando para dar o bote em você, para te encobrir com um berro de terror. A cara dele ainda é reconhecível, e você tem os olhos fixos nos olhos vidrados dele. Chegando na calçada, você revê uma cena de todos os dias, que todos os dias te deixa confuso: pessoas fazem fila para comprarem doces que estão ao alcance delas, divididos somente por uma vitrine e uma mulher que os coloca em saquinhos. Aquele ritual te confunde. Você reinventa todo um sistema, diariamente, que depois se dilui no esquecimento. Algo ali não está certo, nem nas pessoas do lado de cá, nem nas do lado de lá. Muito menos te convencem as mulheres do lado de lá, uniformizadas por algo que não lhes é uniforme: expressões.

Do lado de fora da doceria, você faz uma descoberta que te assusta terrivelmente: você vê uma mendiga velha, com um seio a mostra e um filho no colo. Você se sente estrangulado, sufocado, eroticamente atraído e enojado, pois percebe que consegue vê-la sem que ela te veja, vivendo como está numa espécie de solilóquio repetitivo, incapaz de ter a real sensação do universo. O que te arrepia é que ela ri, canta e se diverte, você não sabe do que, mas ri muito. Imunda, sentada na calçada, o filho pendurado na gola, a mendiga vive sem notar você, sem notar ninguém. Você não consegue parar de olhar pra ela, o seio, a criança da tua idade, o frio na barriga, o conforto da mão de sua mãe e uma tristeza profunda.

Talvez esse seja o primeiro dia na tua vida em que a tristeza tenha te assolado de tal forma, vinda de fora, que nada tivesse a ver com os teus brinquedos, com a tua sopa de legumes ou com uma bronca dos seus pais.

Vocês andam rápido, mas a imagem daquilo tudo não desaparece da sua cabeça. Você tem questões e não tem como perguntá-las. Ainda andam mais uns três ou quatro quarteirões, mas desde aquele instante, você não olha mais a rua, não se distrai mais, não nota mais ninguém. Você se introverteu. Olha, hipnoticamente, a textura da calçada, e não para de imaginar coisas a respeito daquela mulher velha jogada num canto público do mundo, por onde todos passam e cuidam de estocar-se de doces para a eternidade, aquela criança fazendo sons irreconhecíveis e aquele seio enorme, enormemente enrugado com o bico negro firme, apetitoso. Você nota que a mão da sua mãe te aperta um pouco mais que antes e o passo se torna um pouco mais ligeiro, talvez por que ela tenha notado alguma coisa, ou simplesmente para escapar de um bonde que vinha na direção de vocês. Misturado ao fólego escasso está uma certa sensação de não querer estar ali, de que tudo mudou, de que você viu algo que não devia, algo que comprometeria a sua licença de ser somente criança.

Você virou uma bola de fogo. Chamar essa sensação de medo, seria subjulgá-la. Chama-la de nojo, seria subvertê-la. Chama-la de fascínio seria exagerá-la. O que seria aquilo que faria você pedir a sua mãe para não te servir almoço naquele dia, chorar até para não comer a salsicha com lentilha que sempre foi a maior delícia, e implorar para desaparecer no seu quarto, e dar uma dormidinha, se encurralando na tua cama, de onde todas tuas idéias mais privadas, mais pessoais haverão de vir, fitando o gigantesco armário barroco plantado ali e que fora a sua primeira arena de ações fictícias, a tua primeira cidade proibida, o teu primeiro cenário. O que era esse sentimento que te acharia sentado na cama horas mais tarde chorando em silêncio por ter feito xixi na cama, no meio de uma tarde ensolarada, quando todas as crianças brincavam lá em baixo e o barulho da bola batendo no muro sem parar te assustava e ensurdecia cada vez mais e o brilho do sol debaixo do qual se entretiam te cegava....o que seria tudo aquilo? Não havia duvidas.

Aquilo chamava-se amor.